No final do século XIV, entre 1387 e 1392, Jean D’Arras compila A História de Melusina ou o Romance dos Lusignan, transpondo para a escrita uma lenda que habitava o repertório popular, difundida oralmente.
A narrativa conta a história de uma fada convertida em mulher e que, vítima de uma maldição, é condenada a transformar-se em mulher-serpente aos sábados, tendo como única possibilidade de levar uma vida normal a condição de desposar um homem que não a observasse no dia de sua transformação. Ao se casar, a personagem-título dá início à nobre linhagem de Lusignan, até desaparecer, por causa da quebra, por parte do marido, da promessa feita a ela. A partir de então, a protagonista surge, esporadicamente, sob a forma de aparição, a cada vez que sua linhagem se encontra ameaçada.
Assumindo simultaneamente contornos de um livro de linhagem e de um mito de origem, o texto retrata a tensão de uma época dividida entre o cristianismo, que se impunha, e o paganismo, que resistia. A caracterização da protagonista como um ser híbrido estabelece um conflito entre os diferentes códigos religiosos, permitindo uma reflexão acerca do imaginário medieval.
A narrativa constitui-se numa representativa e ambivalente alegoria da condição feminina no universo de então, caracterizando-se por um movimento pendular, marcado, de um lado, pela repressão cristã, e, de outro, pela transgressão representada pelo imaginário pagão. Dessa forma, o presente estudo tem por objetivo refletir acerca da representação da mulher e do monstro na cultura medieval à luz do pensamento de Delumeau, Kappler, Brunel e Le Goff.
Por meio da representação híbrida, fundindo, de forma ambivalente, os imaginários cristão e pagão, busca-se pensar a figura feminina à luz da dicotomia Bem/Mal presente no universo medieval.